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Escrever é cheio de casca e de pérola.
Manoel de Barros
Contar
é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia
que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares.
Guimarães Rosa
Leio João Guimarães Rosa e me enleio, com força e alegria, num
infindável encantamento. Leio Manoel de Barros e me enleio, no esverdear do
lodo grudado nas pedras do riachozinho, que atravessa entresonhos[1] de
minha meninice. Travessias e mimetismo. Em Grande
Sertão, ando entre tortas veredas e os perigos do viver, correndo o risco
de topar com o diabo no meio do redemoinho. Ou será do caminho? Na Gramática expositiva do chão entro em
contato com o barro do caminho marcado pelas patas da boiada que passou e que
ainda vai passar. Modelo-me não para sentir, mas para ser as coisas pequeninas,
desimportantes, rastejantes, que mourejam na imensidão das verdes águas pantaneiras.
Lendo, sapejo-me, lesmo-me, visgo-me, embarro-me e enrio-me.
Que maquinaria, que mecanismo misterioso tictacteia no jeito de
contar do João? E de que será feito o poetizar de Manoel? Terão eles feito um
pacto com o Sem Nome? Sei não. O
imenso contar de Rosa tem a teimosia do Sertão de ser em todo lugar. A poesia
De Barros tem os pés e a boca cheios de musgos e o corpo esverdeado dos rumores
e humores da liquidez do Pantanal. Um sertanejo. Um pantaneiro. Adjetivos que
brilham, mas não dizem nada deles. João e Manoel são duas parteiras velhas,
dois criadores de palavras. Dois criadores de mundos. As palavras deles são palavras
novas, nascidas de outras, metamorfoseadas, desdizentes de coisas velhas e
dizedoras de coisas no pleno acontecer.
O que é contar? O que é escrever? Parece-me que eles contam tudo
aos avessos. Quem dá credito a um diplomata que fala sobre Diadorim e suas
neblinas? Ou um poeta sendo sapo ou árvore? Contar é doidera, fantasiação. É
encontrar o diabo no meio da rua, no meio
do redemunho...[2] Mas qualquer sombrinha
resfreca e o contar voa reto. O contar de Rosa principia vagaroso como se
nonada ele quisesse, mas continua pela fidúcia nos quereres do ouvinte, que de tão
ouvinte nem precisa falar. Contenta-se em ser presença. Ouvinte que mantém
parentesco com João que ao se esquecer de si embolora de tanta narração, a
ponto do leitor não esquecer que ele empareda-se com o narrador. Que ele anota
em caderneta. Que tem leitura e doutoração, coisas que o narrador Riobaldo até
inveja, embora ele mesmo já tenha visto de tudo e em folhas grandes de papel
tracejado bonitos mapas.
O narrador Riobaldo é diverso de todo mundo. Sua neblina é
Diadorim. Com Diadorim ele aprendeu a apreciar as belezas que encantam Manoel,
como o vôo dos pássaros, o cheiro do campo com florzinhas, a música das cigarras,
o céu azul-vivoso e os pássaros como o Manoelzinho da Croa, que sem Diadorim
ele não teria sabido apreciar, mas matar com espingarda, porque nunca tinha ouvido dizer de se parar
apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera dos pássaros, em seu começar e
descomeçar dos vôos e pousação.[3]
Coisas que se empassarinham na poesia de Manoel e faz palavra amanhecer entre aves[4].
Olhares que causam sossego, que exigem carinhos. E o Manoelzinho da Croa sempre
em casal, na galinholagem deles, às vezes
davam beijos de biquinquim.[5]
Se em Rosa, viver é um
descuido prosseguido[6], tanto nele quanto
em Manoel contar e poetizar viram cuidados prosseguidos. Um contínuo lembrar e
deslembrar. É um afogo de chegar, chegar
e perto estar, tirar instantâneos das coisas.[7] O
contar de Riobaldo tem nascedouro na recordação sempre quente, retomada,
remendada. De continuação inventada. Cheia dos traquejos de quem se mistura na
invenção e no real da vida, sem adquirir sabenças em desmisturar. A vida
disfarça? A vida inventa? Na invenção os disfarces cabem mais porque o real tem
menos formato; por isso viver é muito perigoso, é assim como pelejar por exato, viver é etcétera.[8] Imagino
que vida e a invenção são semelhantes ao Rio Desbocado de João: definitivo, cabal, nunca há de ser.[9]
Minha tarefa de escrevinhadora, pertencente ao campo da história,
devia ser dizer como andava o mundo, o sertão de João, o Brasil, o pantanal de
Manoel no presente da escrita deles, mas acabo sofrendo da angústia de outro
criador de mundos, o italiano Ítalo Calvino, quando esteve escrevendo sobre
exatidão, ele disse: às vezes procuro
concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo
que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa
determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever.[10] Por
isso, desando da história e busco às poesias, cujas palavras me trazem
novidades e desejos de que meu corpo faça uma
curva diante das flores.[11]
Parece-me que minha escrita está tomando o rumo de estabelecer
correlações entre João e Manoel, pois não vem ao caso proceder comparações.
Desejo meu mesmo, é aprender a erra a língua, emparelhar e desemparelhar os
dizeres dos dois, porque poeta é sempre
um ser escaleno.[12] Desigual
e descompassado, nossos dois guardadores de palavras, produzem assombros
poéticos e arejam a linguagem. Como este de Manoel, é ínvio e ardente o que o sabia diz./e tem espessura de amor[13],
ou este outro de João: o vento é verde.
Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo.[14]
A matéria da prosa roseana vem de um maço de estórias de toda
raça de artes e estratagemas.[15] E
a matéria da poética manoelina? É feita de tudo
aquilo que a nossa/civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para
poesia/os loucos de água é estandarte/servem demais.[16] Demasias
do dizer de quem tem narração fina, bordada em bastidor e de quem carrega água
na peneira, de quem escreve nos meio dos contrários. Grande Sertão veredas foi lançado em maio de 1956, quando nós,
vivíamos entre prognósticos diversos: o desaparecimento do sertão e a
construção de Brasília, onde antes reinavam buritizais, seria erguida nossa
definitiva modernidade. Profecias. Mas na prosa de João o sertão rendeu
encantos e estranhezas.
Manoel escapou por metáforas nos anos em que esteve em colégio
interno. Um padre disse: - não presta pra nada; há de ser poeta! Aí ele
aprendeu a desobedecer na escrita, a tocar nos ínfimos, a reaprender a errar a
língua. Tornou-se um buscador de desvios, um atalhador de caminhos, um ser nas
coisas disfarçado e com a boca impregnada de árvores. Que trata com trastes. E contrastes[17]. Um sujeito
tímido e remendador. Não biografável ou talvez seja. Mas como biografar um
sujeito que:
Usava um dicionário
ordinário
com 11 palavras de
joelhos
inclusive bestego.
Posava de esterco
para 13 adjetivos
familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e
sarjetas.
tinha a voz de chão
podre.
Tocava a fome a 12
bocas.
e achava mais
importante fundar um verso
do que uma Usina
Atômica!
Era um sujeito
ordinário.[18]
O método de escrita de Manoel lembra o método da montagem usado
por Walter Benjamin em seu Passagens. Manoel anota tudo, não tem métodos,
aleatoriamente vai enchendo seus cadernos com desvios fonéticos, semânticos, estruturais e achados em leituras.
Pessoas promíscuas de água e de pedra[19],
inclusive, caracol passeando na parede[20]. Mas
Manoel mexe com as palavras. Retira-as do caos dos seus 30 ou cinqüenta
cadernos, corta as palavras compridas, porque
o verso balança melhor com palavras curtas.[21]
Ritmiza e emenda palavras, expõe rupturas e estrutura versos, despreza o real porque ele exclui a fantasia[22] e
só dá por acabado um poema se a linguagem
conteve o assunto nas suas devidas escolhas.[23]
Sua escrita se faz de montagem de fragmentos, nela o restolho e o cisco
ascendem.
Penso que Manoel ensina que escrever não estabelece correlações
com a noção de inspiração, mas muito mais com a noção de paciência, de esperar
que as palavras sedimentem, adquiram lodo, para que nos aproximemos da noção de
exatidão como gostaria Ítalo Calvino. Em primeiro lugar, precisamos de um projeto de obra bem definido e calculado[24],
em segundo lugar, evocar imagens visuais
nítidas, incisivas, memoráveis[25] e
em terceiro lugar, fazer uso de uma
linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir
as nuanças do pensamento e da imaginação.[26] afinal,
escrever é expressar com palavras coisas visuais. João e Manoel são versados
nesse oficio.
Grande Sertão: veredas é um romance. Orhan Pamuk defende a ideia
de que um romance é uma segunda vida.
Ao lermos um romance buscamos atentamente o centro secreto do romance, mas esse
centro encontra-se entre o real e o imaginário.[27]
Ainda segundo Orhan Pamuk romancistas e leitores partilham de dois tipos de
sensibilidades, oscilando entre a ingenuidade e a reflexão. Há escritores e
leitores ingênuos, estes não se dão conta das técnicas que utilizam; escrevem
espontaneamente, como se executassem um ato perfeitamente natural, alheios as
operações e aos cálculos que seus cérebros efetuam e ao fato de que estão usando
as marchas, os freios e os botões que a arte do romance lhes fornece.[28] No
entanto, os leitores e escritores reflexivos são aqueles que ficam fascinados
com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão
muita atenção aos métodos empregados na escrita do romance e à maneira como
nossa mente funciona quando lemos.[29]
Uma boa dose de ingenuidade é fundamental para que escritores e
leitores continuem acreditando nas histórias que contam e lêem. Mas uma boa
dose de reflexão é fundamental para que saibamos que o ato de escrever é
produto de uma arte e de uma técnica.[30] Mas
perder a ingenuidade não tem nada a ver com perder o encantamento ou ficar
imune às alegrias de ler um romance[31]. Mas
qual o centro em Grande Sertão: veredas? Penso que seja a história de amor
entre Riobaldo e Diadorim. A história é narrada por Riobaldo, o que ele conta
são minúcias do tempo em que foi jagunço: por
esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo
bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?[32]
Engana-se quem pensa que Riobaldo debulha todo o passado em seu
contar, ele é narrador que escolhe, que seleciona o que lhe pertence como
passado, conta pelos alto, desemendado, mas
não é por disfarçar.[33] É
apenas seu jeito de contar, costurando histórias que ele não pode deslembrar:[34] a
vida da gente não é facilmente entendível, por isso, narrá-la requer dizer
dificultoso, muito entrançado.[35]
A
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo
e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido,
alinhavado, sé mesmo sendo as coisas de rasa importância. De caca vivimento que
eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era
como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho ,assim é
que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram
muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.[36]
Para contar as coisas de profunda importância, que preenche o
coração com coisas movimentadas, [37]
seu debulhar de histórias é vagaroso. Carece que fique muito bem explicado que
ele nunca teve inclinações para os vícios
desencontrados.[38] É preciso que o ouvinte tenha
paciência, vá ouvindo, adivinhando as artes que vieram depois de um bem querer
que brotava do ar que Riobaldo respirava e dos sonhos de suas noites: astúcia que tive uma sonhice: Diadorim
passando por debaixo de um arco-íris.[39] Mas
a natureza da gente é sempre versável em amizade amor. Contar é dificultoso porque
remexe e balança os lugares que parecem estáveis e as demasias de dizer sobe com as lembranças da mocidade.[40]
A história se espalha por mais de seiscentas páginas, mais o
centro do romance, vai sendo anunciado, previsto na narração miúda, das coisas
que Riobaldo, não pode achar esquecimento.
Pressentimentos e arrepios de imaginar:
O
senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça,
morto à mão, esfaqueado, tinto todo do seu sangue, e os lábios da boca descorados
no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos, meio fechados? E
essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em
sua vida? Ah, Diadorim...E tantos anos já se passaram.[41]
Tudo exige do leitor sabenças de rastreador. No meio da
história, quando o ouvinte já entrou na
prática de limo[42],
e aprendeu o silêncio das pedras, o narrador diz, que já podia botar um ponto
final, mas o que narrou não foi à-tôa, só apontação principal, ele remenda os
retalhos da narrativa e desembrulha o que foi o correr da vida, sem poupar
contrários, detalhes, desamargados dos sonhos, borboletas vistosas,
aprontamentos de guerra, sossegos, assombros da noite. Retardos do relatar. Adiamentos
da hora de contar as coisas muito
estranhas[43] acontecidas nos fundos do
Sertão que mesmo um contador habilidoso
não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez.[44]
Assim, ele prepara o ouvinte para o fim terrível, terrivelmente,[45]
que o leitor fareja em Diadorim, segredo maior de Riobaldo, que mesmo tudo quando já estava pendurado para o fim[46],
olhou e desentendeu que Diadorim era mulher. Na surpresa entendeu os
pressentimentos do amor. Travessia que só no fim a gente divisa à metade. Fim que foi.[47] Porque
sertão é uma espera enorme[48] e ao levantar do
dia: auroras e travessias.
Aqui a estória se
acabou.
Aqui, a estória
acabada.
Aqui a estória acaba.[49]
No entanto,
espero ter aproximado João e Manoel mesmo que por instinto e por apalpos.[50] Ítalo Calvino convenceu-me que escrever
prosa e poesia em nada difere, não me refiro ao debate sobre ficção e
realidade, mas aos mecanismos da escrita, válidos também para nós,
historiadores, e que implica numa paciente procura pelos elementos dão
insubstituíveis dão ritmo e leveza à expressão verbal, trata-se da busca de uma
expressão necessária, única, densa, concisa, memorável.[51] Nem João, nem Manoel podem ser chamados de ingênuos
pois, a prosa de um e a poesia do outro entesouram frases de pensar. A gente
tem que aprender com eles, a gente tem que pensar com eles.
[1] Palavra pescada em BORGES, Jorge Luis. Ficções. Companhia
das Letras, 2011.
[2] ROSA, João Guimarães.
Grande Sertão: veredas. 19 ed. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011, p. 27.
[4] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1990, p. 318.
[6] Idem, ibidem, p. 86.
[7] Idem, ibidem, p. 89.
[8] Idem, ibidem, p. 110
[9] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 201.
[10] CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.
83.
[11] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. op. cit. p. 39.
[12] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 314.
[13] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. op. cit. p. 178.
[15] Idem, ibidem. p.137.
[16] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. op. cit. p. 146.
[17] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 331.
[18] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. op. cit. p. 193.
[19] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 333.
[20] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 332.
[21] Idem, ibidem. 334.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.
[24] CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 71.
[25] Idem, ibidem, p. 71.
[26] Idem, ibidem, p. 72.
[27] Consultar o interessante ensaio do escrito turco, PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[28] PAMUK, Orhan. O
romancista ingênuo e o sentimental. Op. cit. p. 16.
[29] Idem, ibidem, p. 16.
[30]Idem, ibidem, p. 52.
[31] Idem, ibidem, p. 45.
[33] Idem, ibidem, p. 114.
[34] Idem, ibidem, p. 120.
[35] Idem, ibidem, p. 116.
[36] Idem, ibidem, p. 114-115.
[37] Idem, ibidem, p. 136.
[38] Idem, ibidem, p. 162.
[39] Idem, ibidem, p. 66.
[40] Idem, ibidem, p. 208.
[41] Idem, ibidem, p. 207.
[42] BARROS, Manoel de. Poesia
completa. op. cit. p. 121.
[44] Idem, ibidem, p. 433.
[45] Idem, ibidem, p. 574.
[46] Idem, ibidem, p. 609.
[47] Idem, ibidem, p. 616.
[48] Idem, ibidem, p. 591.
[49] Idem, ibidem, p. 616.
[50] BARROS, Manoel de. Gramática
expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 337.
[51] CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 61.