quarta-feira, 3 de junho de 2015

JOÃO E MANOEL: Gente que se despetala, gente que se abre aos desentendimentos gramaticais



Fonte: Pesquisa Google. http://www.elfikurten.com.br
http://www.revistabula.com/


Escrever é cheio de casca e de pérola.
Manoel de Barros

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares.
Guimarães Rosa


Leio João Guimarães Rosa e me enleio, com força e alegria, num infindável encantamento. Leio Manoel de Barros e me enleio, no esverdear do lodo grudado nas pedras do riachozinho, que atravessa entresonhos[1] de minha meninice. Travessias e mimetismo. Em Grande Sertão, ando entre tortas veredas e os perigos do viver, correndo o risco de topar com o diabo no meio do redemoinho. Ou será do caminho? Na Gramática expositiva do chão entro em contato com o barro do caminho marcado pelas patas da boiada que passou e que ainda vai passar. Modelo-me não para sentir, mas para ser as coisas pequeninas, desimportantes, rastejantes, que mourejam na imensidão das verdes águas pantaneiras. Lendo, sapejo-me, lesmo-me, visgo-me, embarro-me e enrio-me.
Que maquinaria, que mecanismo misterioso tictacteia no jeito de contar do João? E de que será feito o poetizar de Manoel? Terão eles feito um pacto com o Sem Nome? Sei não. O imenso contar de Rosa tem a teimosia do Sertão de ser em todo lugar. A poesia De Barros tem os pés e a boca cheios de musgos e o corpo esverdeado dos rumores e humores da liquidez do Pantanal. Um sertanejo. Um pantaneiro. Adjetivos que brilham, mas não dizem nada deles. João e Manoel são duas parteiras velhas, dois criadores de palavras. Dois criadores de mundos. As palavras deles são palavras novas, nascidas de outras, metamorfoseadas, desdizentes de coisas velhas e dizedoras de coisas no pleno acontecer.
O que é contar? O que é escrever? Parece-me que eles contam tudo aos avessos. Quem dá credito a um diplomata que fala sobre Diadorim e suas neblinas? Ou um poeta sendo sapo ou árvore? Contar é doidera, fantasiação. É encontrar o diabo no meio da rua, no meio do redemunho...[2] Mas qualquer sombrinha resfreca e o contar voa reto. O contar de Rosa principia vagaroso como se nonada ele quisesse, mas continua pela fidúcia nos quereres do ouvinte, que de tão ouvinte nem precisa falar. Contenta-se em ser presença. Ouvinte que mantém parentesco com João que ao se esquecer de si embolora de tanta narração, a ponto do leitor não esquecer que ele empareda-se com o narrador. Que ele anota em caderneta. Que tem leitura e doutoração, coisas que o narrador Riobaldo até inveja, embora ele mesmo já tenha visto de tudo e em folhas grandes de papel tracejado bonitos mapas.
O narrador Riobaldo é diverso de todo mundo. Sua neblina é Diadorim. Com Diadorim ele aprendeu a apreciar as belezas que encantam Manoel, como o vôo dos pássaros, o cheiro do campo com florzinhas, a música das cigarras, o céu azul-vivoso e os pássaros como o Manoelzinho da Croa, que sem Diadorim ele não teria sabido apreciar, mas matar com espingarda, porque nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera dos pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação.[3] Coisas que se empassarinham na poesia de Manoel e faz palavra amanhecer entre aves[4]. Olhares que causam sossego, que exigem carinhos. E o Manoelzinho da Croa sempre em casal, na galinholagem deles, às vezes davam beijos de biquinquim.[5]
Se em Rosa, viver é um descuido prosseguido[6], tanto nele quanto em Manoel contar e poetizar viram cuidados prosseguidos. Um contínuo lembrar e deslembrar. É um afogo de chegar, chegar e perto estar, tirar instantâneos das coisas.[7] O contar de Riobaldo tem nascedouro na recordação sempre quente, retomada, remendada. De continuação inventada. Cheia dos traquejos de quem se mistura na invenção e no real da vida, sem adquirir sabenças em desmisturar. A vida disfarça? A vida inventa? Na invenção os disfarces cabem mais porque o real tem menos formato; por isso viver é muito perigoso, é assim como pelejar por exato, viver é etcétera.[8] Imagino que vida e a invenção são semelhantes ao Rio Desbocado de João: definitivo, cabal, nunca há de ser.[9]
Minha tarefa de escrevinhadora, pertencente ao campo da história, devia ser dizer como andava o mundo, o sertão de João, o Brasil, o pantanal de Manoel no presente da escrita deles, mas acabo sofrendo da angústia de outro criador de mundos, o italiano Ítalo Calvino, quando esteve escrevendo sobre exatidão, ele disse: às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever.[10] Por isso, desando da história e busco às poesias, cujas palavras me trazem novidades e desejos de que meu corpo faça uma curva diante das flores.[11]
Parece-me que minha escrita está tomando o rumo de estabelecer correlações entre João e Manoel, pois não vem ao caso proceder comparações. Desejo meu mesmo, é aprender a erra a língua, emparelhar e desemparelhar os dizeres dos dois, porque poeta é sempre um ser escaleno.[12] Desigual e descompassado, nossos dois guardadores de palavras, produzem assombros poéticos e arejam a linguagem. Como este de Manoel, é ínvio e ardente o que o sabia diz./e tem espessura de amor[13], ou este outro de João: o vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo.[14]
A matéria da prosa roseana vem de um maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas.[15] E a matéria da poética manoelina? É feita de tudo aquilo que a nossa/civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia/os loucos de água é estandarte/servem demais.[16] Demasias do dizer de quem tem narração fina, bordada em bastidor e de quem carrega água na peneira, de quem escreve nos meio dos contrários. Grande Sertão veredas foi lançado em maio de 1956, quando nós, vivíamos entre prognósticos diversos: o desaparecimento do sertão e a construção de Brasília, onde antes reinavam buritizais, seria erguida nossa definitiva modernidade. Profecias. Mas na prosa de João o sertão rendeu encantos e estranhezas.
Manoel escapou por metáforas nos anos em que esteve em colégio interno. Um padre disse: - não presta pra nada; há de ser poeta! Aí ele aprendeu a desobedecer na escrita, a tocar nos ínfimos, a reaprender a errar a língua. Tornou-se um buscador de desvios, um atalhador de caminhos, um ser nas coisas disfarçado e com a boca impregnada de árvores. Que trata com trastes. E contrastes[17]. Um sujeito tímido e remendador. Não biografável ou talvez seja. Mas como biografar um sujeito que:
Usava um dicionário ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
e achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.[18] 


O método de escrita de Manoel lembra o método da montagem usado por Walter Benjamin em seu Passagens. Manoel anota tudo, não tem métodos, aleatoriamente vai enchendo seus cadernos com desvios fonéticos, semânticos, estruturais e achados em leituras. Pessoas promíscuas de água e de pedra[19], inclusive, caracol passeando na parede[20]. Mas Manoel mexe com as palavras. Retira-as do caos dos seus 30 ou cinqüenta cadernos, corta as palavras compridas, porque o verso balança melhor com palavras curtas.[21] Ritmiza e emenda palavras, expõe rupturas e estrutura versos, despreza o real porque ele exclui a fantasia[22] e só dá por acabado um poema se a linguagem conteve o assunto nas suas devidas escolhas.[23] Sua escrita se faz de montagem de fragmentos, nela o restolho e o cisco ascendem.
Penso que Manoel ensina que escrever não estabelece correlações com a noção de inspiração, mas muito mais com a noção de paciência, de esperar que as palavras sedimentem, adquiram lodo, para que nos aproximemos da noção de exatidão como gostaria Ítalo Calvino. Em primeiro lugar, precisamos de um projeto de obra bem definido e calculado[24], em segundo lugar, evocar imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis[25] e em terceiro lugar, fazer uso de uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.[26] afinal, escrever é expressar com palavras coisas visuais. João e Manoel são versados nesse oficio.
Grande Sertão: veredas é um romance. Orhan Pamuk defende a ideia de que um romance é uma segunda vida. Ao lermos um romance buscamos atentamente o centro secreto do romance, mas esse centro encontra-se entre o real e o imaginário.[27] Ainda segundo Orhan Pamuk romancistas e leitores partilham de dois tipos de sensibilidades, oscilando entre a ingenuidade e a reflexão. Há escritores e leitores ingênuos, estes não se dão conta das técnicas que utilizam; escrevem espontaneamente, como se executassem um ato perfeitamente natural, alheios as operações e aos cálculos que seus cérebros efetuam e ao fato de que estão usando as marchas, os freios e os botões que a arte do romance lhes fornece.[28] No entanto, os leitores e escritores reflexivos são aqueles que ficam fascinados com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão muita atenção aos métodos empregados na escrita do romance e à maneira como nossa mente funciona quando lemos.[29]
Uma boa dose de ingenuidade é fundamental para que escritores e leitores continuem acreditando nas histórias que contam e lêem. Mas uma boa dose de reflexão é fundamental para que saibamos que o ato de escrever é produto de uma arte e de uma técnica.[30] Mas perder a ingenuidade não tem nada a ver com perder o encantamento ou ficar imune às alegrias de ler um romance[31]. Mas qual o centro em Grande Sertão: veredas? Penso que seja a história de amor entre Riobaldo e Diadorim. A história é narrada por Riobaldo, o que ele conta são minúcias do tempo em que foi jagunço: por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?[32]
Engana-se quem pensa que Riobaldo debulha todo o passado em seu contar, ele é narrador que escolhe, que seleciona o que lhe pertence como passado, conta pelos alto, desemendado, mas não é por disfarçar.[33] É apenas seu jeito de contar, costurando histórias que ele não pode deslembrar:[34] a vida da gente não é facilmente entendível, por isso, narrá-la requer dizer dificultoso, muito entrançado.[35]
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, sé mesmo sendo as coisas de rasa importância. De caca vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho ,assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.[36]
Para contar as coisas de profunda importância, que preenche o coração com coisas movimentadas, [37] seu debulhar de histórias é vagaroso. Carece que fique muito bem explicado que ele nunca teve inclinações para os vícios desencontrados.[38] É preciso que o ouvinte tenha paciência, vá ouvindo, adivinhando as artes que vieram depois de um bem querer que brotava do ar que Riobaldo respirava e dos sonhos de suas noites: astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris.[39] Mas a natureza da gente é sempre versável em amizade amor. Contar é dificultoso porque remexe e balança os lugares que parecem estáveis e as demasias de dizer sobe com as lembranças da mocidade.[40]
A história se espalha por mais de seiscentas páginas, mais o centro do romance, vai sendo anunciado, previsto na narração miúda, das coisas que Riobaldo, não pode achar esquecimento.
Pressentimentos e arrepios de imaginar:  
O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo do seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos, meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida? Ah, Diadorim...E tantos anos já se passaram.[41]   

Tudo exige do leitor sabenças de rastreador. No meio da história, quando o ouvinte já entrou na prática de limo[42], e aprendeu o silêncio das pedras, o narrador diz, que já podia botar um ponto final, mas o que narrou não foi à-tôa, só apontação principal, ele remenda os retalhos da narrativa e desembrulha o que foi o correr da vida, sem poupar contrários, detalhes, desamargados dos sonhos, borboletas vistosas, aprontamentos de guerra, sossegos, assombros da noite. Retardos do relatar. Adiamentos da hora de contar as coisas muito estranhas[43] acontecidas nos fundos do Sertão que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez.[44] Assim, ele prepara o ouvinte para o fim terrível, terrivelmente,[45] que o leitor fareja em Diadorim, segredo maior de Riobaldo, que mesmo tudo quando já estava pendurado para o fim[46], olhou e desentendeu que Diadorim era mulher. Na surpresa entendeu os pressentimentos do amor. Travessia que só no fim a gente divisa à metade. Fim que foi.[47] Porque sertão é uma espera enorme[48] e ao levantar do dia: auroras e travessias.

Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.[49]

No entanto, espero ter aproximado João e Manoel mesmo que por instinto e por apalpos.[50] Ítalo Calvino convenceu-me que escrever prosa e poesia em nada difere, não me refiro ao debate sobre ficção e realidade, mas aos mecanismos da escrita, válidos também para nós, historiadores, e que implica numa paciente procura pelos elementos dão insubstituíveis dão ritmo e leveza à expressão verbal, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável.[51] Nem João,  nem Manoel podem ser chamados de ingênuos pois, a prosa de um e a poesia do outro entesouram frases de pensar. A gente tem que aprender com eles, a gente tem que pensar com eles.




[1] Palavra pescada em BORGES, Jorge Luis. Ficções. Companhia das Letras, 2011.
[2] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011, p. 27.
[3] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 159.
[4] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1990, p. 318.
[5] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 159.
[6] Idem, ibidem, p. 86.
[7] Idem, ibidem, p. 89.
[8] Idem, ibidem, p. 110
[9] BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 201.
[10] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 83.
[11] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 39.
[12] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 314.
[13] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 178.
[14] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 306.
[15] Idem, ibidem. p.137.
[16] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 146.
[17] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 331.
[18] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 193.
[19] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 333.
[20] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 332.
[21] Idem, ibidem. 334.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.
[24] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 71.
[25] Idem, ibidem, p. 71.
[26] Idem, ibidem, p. 72.
[27] Consultar o interessante ensaio do escrito turco,  PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental.  São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[28] PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. Op. cit. p. 16.
[29] Idem, ibidem, p. 16.
[30]Idem, ibidem, p. 52.
[31] Idem, ibidem, p. 45.
[32] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 43.
[33] Idem, ibidem, p. 114.
[34] Idem, ibidem, p. 120.
[35] Idem, ibidem, p. 116.
[36] Idem, ibidem, p. 114-115.
[37] Idem, ibidem, p. 136.
[38] Idem, ibidem, p. 162.
[39] Idem, ibidem, p. 66.
[40] Idem, ibidem, p. 208.
[41] Idem, ibidem, p. 207.
[42] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 121.
[43] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 397.
[44] Idem, ibidem, p. 433.
[45] Idem, ibidem, p. 574.
[46] Idem, ibidem, p. 609.
[47] Idem, ibidem, p. 616.
[48] Idem, ibidem, p. 591.
[49] Idem, ibidem, p. 616.
[50] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 337.
[51] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 61.

sábado, 23 de maio de 2015

Os caminhos das narrativas entre o viver e o contar

Imagem: http://www.record.com.br/images/livros/850106713X.jpg


“En cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna, de invocar los espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada palabra el testimonio de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por su permanente victoria contra los sordos poderes de la muerte.”

(Gabriel Garcia Márquez - 1982)



Foi numa conversa, na Confraria do Café em Caruaru, ponto de encontro de poetas, curiosos, passantes e apreciadores da aromática e preciosa bebida, que ouvi falar pela primeira vez, dos livros de Gabriel Garcia Márquez. Um dos muitos freqüentadores do lugar falava com entusiasmo dos singulares personagens de Cem anos de Solidão, movida pela curiosidade comprei o livro. Fascinada pela narrativa fiz a leitura em poucos dias e terminei de ler confusa com a complicada genealogia dos Buendía, mas até hoje, a assombrosa Macondo e seus solitários habitantes fazem parte de minha memória literária.
Tempos depois uma amiga emprestou-me O amor nos Tempos do Cólera, narrativa do amor de Florentino Ariza por Firmina Daza. Nele Garcia Márquez conta a história de um amor interrompido e carregado de impossibilidades, mas que atravessa meio século para poder se apresentar como possível. Da paixão vivida na adolescência restam cartas e a esperança de que a espera não seja em vão. O amor de Florentino dura uma vida inteira, mas a solidão, não.
Neste romance o escritor colombiano escreveu a história do amor de seus próprios pais: Gabriel Elígio Garciá era telegrafista, violinista, poeta e forasteiro. Ainda muito jovem apaixonou-se por Luiza Márquez, porém, não puderam viver essa paixão sem experimentar contrariedades. O Coronel Nicolas Márquez, resolveu plantar distâncias entre os enamorados, enviando a filha para a casa de parentes em uma viagem insana sob “sóis desnudos e aguaceiros ferozes” para desviá-la dos caminhos do amor, porém, os apaixonados resolveram manter viva a chama da paixão. Com a ajuda de amigos, o jovem telegrafista montou uma rede de comunicação que alcançava sua amada onde ela estivesse.
Comecei a ler Viver para Contar em abril de 2009. Não li de um fôlego só, intercalei com outras leituras e só agora avancei velozmente por entre suas páginas. Eis, que leio o livro de memórias de Garcia Márquez! O poético título enlaça sua vida e sua arte. Vida e narração confundem-se no exercício poético de combater os poderes da morte. A mesma morte enfrentada por Sherezade em seus contos noturnos.
Embrenhar-se na leitura de Viver para Contar é ir ao encontro dos lugares, tempos e personagens que habitam a trama magistral de sua obra. Já nas primeiras páginas nos deparamos com Macondo, a aldeia imaginária onde vivem os filhos da linhagem dos Buendía. Ele viu a palavra pela primeira vez no portal de uma fazenda de bananeira em suas primeiras viagens com o avô. Não se preocupou muito em saber seu significado, apenas gostou de sua ressonância poética. Cada palavra escrita testemunha sua devoção pela virtude da adivinhação.
Gabriel nasceu em Aracataca na casa dos avós maternos e lá viveu até os oitos anos. O ponto de partida da narração de suas memórias é o reencontro com a velha casa dos avós, justamente no momento em que sua mãe precisa vendê-la. Avançando na leitura vamos encontrando as ressonâncias entre o viver e o contar. Para o escritor só há uma casa no mundo e talvez por isso a casa dos Buendía guarde tantas semelhanças com a casa de Aracataca. A disposição dos cômodos, a frondosa castanheira, a oficina de ourivesaria, a sala de jantar e o jasmineiro são comuns as duas casas.
 Os peixinhos dourados de olhos esmeraldinos que Aureliano Buendía fazia com tanto zelo e prazer na imaginária Macondo, eram feitos pelo Avô na casa de Aracataca. O retrato da menina envolta em saias franzidas que não se assemelhava ao retrato de uma bisavó esteve na sala da velha casa dos Márquez. Objetos, histórias, memórias, percursos, personagens caminham com seus próprios pés na narrativa de Garcia Márquez. E nós, seus leitores também não conseguimos distinguir a linha que separa o real e o imaginário. Porventura, existe essa linha?
O livro de memórias de Garcia Márquez é um acontecimento literário que envolve memória, pensamento e sensibilidade. Sua escrita romanesca e autobiográfica articula as invisíveis tramas do lembrar e do esquecer. Faz-se na arte de dizer os itinerários possíveis entre o nascer, o comer e o morrer de inumeráveis homens e mulheres afeitos aos assombros da solidão. Da solidão que nos pega de assalto para que possamos recolher em palavras a vida que a gente recorda.
Recordar é uma palavra de ressonâncias latinas.  Vem de re-cordis e quer dizer: tornar a passar pelo coração. A escrita de Gabriel se assenta nesse retorno das coisas que passam pelo coração. Na impossibilidade de contar tudo, ele conta o que recorda e como recorda. O recordar ritmiza sua escrita e embala nossa leitura. O recordar leva-nos de encontro à escrita histórica porque parece que já não temos dúvida de que historiadores e romancistas são produtores de textos. Não temos dúvida de que qualquer tipo de escritura da história, pertence ao gênero da narrativa.
Somos narradores! Essa certeza toma forma nas obras clássicas de Michel de Certeau e Paul Ricoeur, elas deixam claro que entre as narrativas de ficção e as narrativas de história há algo em comum: um mesmo modo de fazer agir dos personagens, uma mesma forma de construir a temporalidade e uma mesma compreensão de causalidade. História e literatura compartilham categorias fundamentais. A arte de escrever é comum às duas.
Portanto, partilhamos com Gabriel Garcia Márquez operações específicas que cruzam a arte de escrever. Essa arte exige engenhosos percursos que nos levam da memória ao texto, da trama a escritura, do vivido ao narrado. O texto feito trama abarca desejos, sonhos, anseios, paixões, fúrias e nossos mais íntimos devaneios. Nele espraiamos nossa solidão ancestral, porque não somos capazes de agüentar o “peso esmagador de tanta coisa acontecida”. E assim, vivemos e contamos para vencer os nefastos poderes da morte.




segunda-feira, 18 de maio de 2015

Entre territórios de sonhos e flores do esquecimento


Imagem: http://www.companhiadasletras.com.br/images/livros/12649_g.jpg

“aquela vila tem o viver de um rio.
 Manso e vagaroso, mas com fatais enchentes
[...]
O mar é habilidoso desenhador de ausências
[...]
Que o amor acontece para a gente desacontecer."


Mia Couto


Adentrei na labiríntica narração de Mia Couto, escritor moçambicano, por meio de seu livro Terra Sonâmbula. Acertada iniciação, pois foi seu modo impressionante de encaixar histórias umas nas outras que me orientou na leitura de Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Ao leve passar das plenas páginas, envolvi-me nos mistérios que cercam os viventes da enevoada Vila Cacimba.
Fiz uma primeira leitura, meio desprentesiosa, mas suficiente para passar algumas horas do dia com o coração e a mente ocupados com a intrigante rede de histórias. Enveredei por uma segunda leitura com olhos de exploradora, armada com perguntas e em busca de respostas.O trabalho de narrar empreendido por Mia Couto pode ser comparado ao trabalho da bordadeira que, em seu ofício entrelaça linhas de diferentes cores. Os fios da urdidura dispostos no sentido vertical sustentam os fios da trama passados no sentido transversal. Mas pronto o bordado, urdidura e trama de tão indispensável uma a outra se confundem. Evidencia-se o bordado.
O bordado-escrita de Mia Couto coloca em relevo um conjunto de personagens arrematados com os fios da névoa que cobre Vila Cacimba. Cada um tresandarilha, em seu próprio mundo e nas fronteiras do acontecer. Cada um borda-se de verdades, mentiras, sonhos, lembranças, esquecimentos. Com essas linhas multicores e diferentes são feitos Sidónio Rosa, o casal Dona Munda e Bartolomeu Sozinho, o administrador Alfredo Suecelência e a ausente Deolinda.
Sidónio Rosa, médico português. Homem branco e estrangeiro nas profundezas da África. Chega a Vila Cacimba em busca das pegadas de Deolinda, mulher africana que conhecera em um congresso na cidade de Lisboa. Instala-se no lugarejo sob o pretexto de cuidar dos habitantes atacados por uma estranha doença. Para o médico é apenas um surto de meningite. Mas os cacimbeiros acreditam que os tresandarilhos – assim chamados pelo povo porque quando atingidos pela doença saem às ruas com ares de enlouquecidos, agitando os braços como se quisessem voar – estão possuídos por espíritos.
Vila Cacimba é um lugar onde todos vivem em solidão, e “as famílias são caixas de história, segredos e mentiras”. Por isso Dona Munda Sozinho é mulher que vive a engavetar segredos. Guardadora de tristezas. Choradeira de acertadas horas. Dona de palavreados certos que têm o poder de deixar Bartolomeu vergado. Cuidadora dos espelhos e das belezas quase extintas. Inventora de outras tantas mulheres costuradas entre os desejos do marido, os seus próprios desejos e sua imaginação. Os desejos de Dona Munda são como os segredos de Vila Cacimba, ferida aberta e nunca cicratizada.
Bartolomeu Sozinho, mecânico reformado que vive entre os sonhos e as lembranças do período colonial. Parece sofredor de graves doenças. Na penumbra de seu quarto recebe visitas diárias do médico estrangeiro. O velho tem o peito ondeado de saudades dos tempos coloniais. Tempos em que atravessara profundos mares quando fez parte da tripulação do paquete Infante D. Henrique. Suas idas e vindas deixou-lhe de herança enormes nostalgias, solidões sem limites e um viver de lonjuras.
Dona Munda e Bartolomeu são os pais de Deolinda. Por isso o médico assume diariamente dedicadas atenções ao seu paciente particular. Suas visitas a casa dos Sozinhos vão desencaixando os segredos e as mentiras inquietas. Sua mentira salta de si mesmo e da pasta esquecida na casa de Bartolomeu.
A narrativa vai-se constituindo entre mentiras e verdades. O que na versão de um personagem nos parece mentira, cujo destino seria o confronto com a verdade é apenas uma outra verdade. Avançar na leitura e finalmente chegar as últimas páginas do livro não assegura que saberemos qual personagem nos presenteará com a “verdade dos fatos”.
 Enquanto Sidónio embrenha-se em territórios sagrados, a desvendar segredos, Deolinda alheia-se em destino ignorado. Misteriosas cartas entregues pelas mãos de Dona Munda trazem notícias de seu sempre adiado retorno. Nestas cartas, Deolinda pede que Sidónio cuide de seus pais e que lhes dê alguns presentes. Na relação entre o casal e o médico estabelece-se negociações onde cada um pretende obter proveitosas condições em defesa de seus interesses imediatos...
Defendendo seus desejos e interesses os personagens tramam-se e inventam-se em suposições do existir. Para receber atenção e presentes do estrangeiro, Bartolomeu e Dona Munda caligrafam falseadas cartas. Afinal, a vida de Bartolomeu caligrafara-se desde os tempos do namoro. O pedido de casamento, o dote, o noivado, tudo havia carecido da formalidade da escrita. Assim, desenvolvera devoção por qualquer papel escrito. A escrita lhe trazia lembranças e o nunca remediado descanso dos sonhos. Bartolomeu queria curar-se de sonhar.
Mas não eram apenas Dona Munda e Bartolomeu que desviavam verdades e escureciam segredos. Sidónio Rosa também era dono de interesses, mentiras e segredos. Ele “ainda” não era quem dizia ser. Ele não mentia, nem falsificava escrituras, era a própria mentira. Solitário e sem regresso estava mesmo era a desacontecer.
À medida que avancei na sinuosa narrativa atravessei fronteiras e adentrei nos territórios de outras leituras. Afinal, não é a leitura um exercício do desacontecer? Na poesia O Leitor*, Rilke escreve que ao baixar seu rosto para o livro, nem sequer a mãe (do leitor) estaria segura de que aquele que ler seja seu filho. Pois, ao ler, o leitor mergulha em sua própria sombra e alheio às horas que passam não se assegura do quanto se desvaneceu. Mas quando bruscamente levanta os olhos da página, seus olhos, são olhos dadivosos que carrega sobre si os aconteceres do livro.
No brusco movimento de tirar os olhos do livro, ele se depara com um mundo pleno e pronto. Seus traços que antes da leitura estavam ordenados ficaram alterados para sempre. É isso que Mia Couto faz com seus leitores, altera seus traços. Desordena-os para sempre! Porque sua escrita não se faz do ordenado e previsível, mas de ruídos, silêncios, cortes, pausas, dúvidas, escuros, embriagues, entorpecimentos, ausências e principalmente de incertezas.



*Poema de Rilke intitulado The Leser – o leitor pertence ao livro A outra parte dos novos poemas publicado em 1908. 

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Projeto ler Mia Couto


    Foto: http://bibliotecadesaopaulo.org.br/2013/08/22/13-frases-de-mia-couto/
    acesso em 23 de fevereiro de 2015

Sobre o autor, ver:




Tenho, em minha estante, a obra de Mia Couto publicada no Brasil. Já li todos. Minha  companheira e eu construímos uma relação afetuosa com esta obra. Os títulos foram comprados, presenteados, encomendados, em momentos significativos para nós. Eu já escrevi algumas resenhas, mas não publiquei. Esse projeto vem sendo pensado há alguns anos. Pretendo apenas, partilhar nossas leituras. Pretendo ler e escrever sobre os livros de forma aleatória, sem seguir ordem cronológica ou alfabética. O maior desejo é partilhar o passeio dos olhos pelas páginas. Dizer sobre o que o coração ficou ocupado enquanto lia. Como leitora nômade não pretendo estabelecer periodicidade, para me deixar levar, ou ficar conforme o rumo da leitura. 

  • Publicados no Brasil:



  1. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Companhia das Letras, 2003 [romance].
  2. O último voo do flamingo. Companhia das Letras, 2005 [romance].
  3. O outro pé da sereia. Companhia das Letras, 2006 [romance].
  4. A varanda do flagipani, Companhia das Letras, 2007 [romance].
  5. Terra sonâmbula, Companhia das Letras, 2007 [romance].
  6. Venenos de Deus, remédios do Diabo, Companhia das Letras, 2008 [romance].
  7. O gato e o escuro, Companhia das Letras, 2009 [Literatura infantil].
  8. O fio das missangas, Companhia das Letras, 2009 [contos].
  9. Antes de nascer o mundo, Companhia das Letras, 2009 [romance].
  10. E se Obama fosse africano?, Companhia das Letras, 2011 [contos].
  11. Estórias abensonhadas, Companhia das Letras, 2012 [contos].
  12. A confissão da leoa, Companhia das Letras, 2012 [romance].
  13. Cada homem é uma raça, Companhia das Letras, 2013 [contos].
  14. A menina sem palavra, Companhia das Letras, 2013 [contos].
  15. Vozes anoitecidas, Companhia das Letras, 2013 [contos].
  16. Contos do nascer da terra, Companhia das Letras, 2014 [contos].


  • Não publicados no Brasil

  1. Pensatempos. Textos de opinião, Lisboa, Caminho, 2009 [Ensaios]. 
  2. A chuva pasmada, Lisboa, Caminho, 2012 [Literatura infantil].
  3. Cronicando, Lisboa, Caminho, 2013 [Crônicas].
  4. Idades cidades divindades, Lisboa, Caminho, 2013 [Poesia].
  5. Interivenções, Lisboa, Caminho, 2013 [Contos].
  6. Tradutor de chuvas, Lisboa, Caminho, 2013 [poesia].
  7. Vinte e Zinco, Lisboa, Caminho, 2014 [romance].
  8. Raiz de Orvalho e outros poemas, Lisboa, Caminho, 2014 [Poesia].
  9. Mar me quer, Lisboa, Caminho, 2014 [Literatura infantil].
  10. Na berma de nenhuma estrada e outros contos, Lisboa, Caminho, 2014 [Contos].
  11. O beijo da palavrinha, Lisboa, Caminho, 2014  [Literatura infantil].
  12. Pensageiro frequente. Lisboa, Caminho, 2014 [Contos].
  13. O menino no sapatinho, Lisboa, Caminho, 2014  [Literatura infantil].
  14. Vagas e lumes, Lisboa, Caminho, 2014 [Poesia].